O policial civil  aposentado Valdivino Rios de Souza, 74 anos, fazia questão de se  despedir das pessoas. Pioneiro do Paranoá, sempre frequentava velórios e  enterros dos moradores da cidade. Chegou a ir a cinco sepultamentos na  mesma semana. Não deixava de prestigiar aqueles que não havia conhecido  em vida. Tudo isso para fazer o morto parecer mais querido e importante.  “É a última despedida de alguém. É algo muito sério. Se não conheci a  pessoa viva, por que não posso conhecer depois de morta?”, questionava  Valdivino.
Apesar do respeito pela morte, Valdivino se recusava a  pensar no dia em que seria a vez de os outros dizerem adeus a ele. Esse  momento inevitável, porém, chegou nas primeiras horas de quarta-feira. O  idoso sofria de câncer no pulmão e sucumbiu após três meses de luta  contra a doença. Muito antes de partir, Valdivino firmou um acordo com  um grande amigo, o músico João Gomes Pereira, 50 anos, mais conhecido  como João do Violão.
É João quem anuncia, em sua Belina  azul-metálica, as mortes da região, por meio de um autofalante fixado na  parte superior do veículo. Há mais de 15 anos, ele sai pelas ruas da  região, sem cobrar nada, para dar notícias fúnebres. Esse trabalho  voluntário tornou-se uma característica folclórica do Paranoá. E  Valdivino, talvez a figura mais assídua em enterros da região, pedira ao  amigo que, quando chegasse sua vez, João anunciasse o falecimento  durante pelo menos 10 horas, para convidar todo o povo do Paranoá a  comparecer ao enterro.
Valdivino queria uma despedida movimentada, do mesmo jeito das que  havia ajudado a proporcionar a tanta gente. Pediu também que o enterro  não ocorresse em menos de 36 horas depois de sua morte. “Já avisei: não  posso ser sepultado rápido. Primeiro porque 36 horas é o tempo de que o  espírito, essa coisa que vive dentro da gente, precisa para se desligar.  Segundo, porque precisa de um prazo para chamar todo mundo para o  velório”.
O amigo João,  quando recebeu a triste notícia da morte de Valdivino, não hesitou em  cumprir o combinado, que mais parecia brincadeira para quem não se  importava tanto assim com o quórum do velório. “A promessa foi de vivo  para vivo. Mas só porque ele está morto não é motivo para deixar de  cumprir. Conhecia o Valdivino desde que eu tinha 13 anos. Ele era como  um pai para mim. O Paranoá amanheceu mais triste”, disse João.
O dono da Belina azul, então, saiu pelas vias do Paranoá disposto a  cumprir a missão. Rodou durante sete horas, na quarta-feira, enquanto a  mensagem de falecimento ecoava. Ontem, João terminou de honrar o trato e  anunciou durante outras três horas o convite para os dois velórios de  seu Valdivino. Uma despedida só não bastava para alguém que levava esse  momento tão a sério. O pioneiro foi velado primeiro no salão da  Administração Regional do Paranoá, das 10h às 14h de ontem. Em seguida, o  corpo seguiu para o cemitério Campo da Esperança, na Asa Sul, onde  ocorreram outro velório e o enterro, por volta as 18h, pouco depois de  decorridas as 36 horas.Antes de todos esses rituais, João tocou no violão canções sertanejas e de MPB que Valdivino apreciava. Todos cantaram, com muita emoção, as músicas Boate azul, Cabecinha no ombro e Boemia. “Fizemos dois velórios porque meu pai gostaria que fosse assim. Ele nunca falou sobre a morte comigo, nem quando estava doente. Acho que tinha medo dela. Mas sei que ele ia querer dizer adeus para o povo do Paranoá primeiro e depois para os amigos das outras regiões”, explicou a filha de Valdivino, Valdete Andrade de Souza, 48 anos.
Nas primeiras duas horas de velório no Paranoá, pelo menos 100 amigos, parentes e conhecidos apareceram na administração para dar os pêsames à família e fazer a vontade de Valdivino. Depois, transportadas em dois ônibus custeados pela família, 200 pessoas lotaram a capela ecumênica do Campo da Esperança. “Ele estaria muito feliz se pudesse ver isso”, afirmou Valdete. Outro filho de Valdivino, Lázaro Ribeiro Rios, 23 anos, mandou fazer um banner com fotos do pai.
Ali estavam estampados diversos momentos felizes: Valdivino perto da natureza, tirando leite de cabras, dando carinho aos filhos e netos e degustando uma latinha de cerveja, hábito que cultivava enquanto escutava moda de viola e fumava um cigarro. Em um dos retratos, destacava-se uma frase dentro de um balão: “Até logo mais!” Foi o que melhor traduziu o bom humor peculiar de Valdivino. “Ele sempre disse que, se fosse embora, jamais iria sair de perto da gente”, lembrou Lázaro.
Valdivino era baiano. Veio para o Distrito Federal em 1957, anos antes de Brasília existir. Ajudou a cavar a barragem do Paranoá, trabalhou como eletricista e aposentou-se como policial civil. Era figura muito conhecida na cidade onde passou a maior parte da vida. Ganhou do governo casas em outras regiões do DF, mas se recusava a sair dali. Partiu com um semblante contrariado no rosto, reforçado pelo vasto bigode grisalho no qual ninguém ousou mexer, mesmo depois da morte. “Ele amava a vida. Certamente não gostou de ir”, disse Valdete.
Fonte: www.correiobraziliense.com.br 

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